Como um cão medroso me tornou num ser humano melhor 

Desde que me recordo, a minha enorme paixão sempre foram os cães.

Desde que me recordo, a minha enorme paixão sempre foram os cães. De tenra idade, com cinco ou seis anos, estava constantemente rodeado por eles – cães esses que não eram “meus”, mas cães vadios com quem partilhava uma boa parte dos meus dias. Era como se a sua forma de comunicar, as suas expressões corporais, estivessem integradas na minha programação biológica .

Foram, aliás, os cães que tornaram muito evidente aquilo que desejava para o meu futuro: tratar, cuidar, e estar com eles o máximo tempo possível através da Veterinária. 

Lembro-me, como se fosse ontem, de um episódio que me marcou profundamente para o resto da minha vida e que fortaleceu ainda mais a certeza do rumo que mais tarde tomaria. Numa noite particularmente escura de Inverno, dando uma volta depois de jantar numa localidade rural, dei pela presença de um cão de porte gigante que por ali vagueava. Sem me dirigir diretamente a ele, sentei-me onde estava e aguardei sem qualquer expectativa. Imediatamente depois, o cão sentou-se a centímetros de mim. Nenhum dos dois tentou interagir, apenas nos deixámos ficar, lado a lado. Um momento que durou perto de uma hora, mas que ficou  gravado para a posteridade na minha memória. Duas coisas ficaram muito claras para mim desde aí: respeita e serás respeitado e ,por vezes, a verdadeira beleza da vida está no silêncio da contemplação.

Se ainda não tivessem sido suficientes as aprendizagens que tinha retirado da convivência com estes animais, anos mais tarde, tomei uma decisão inadiável e que há muito desejava. Ter o meu próprio cão e poder partilhar com ele toda uma vida.

Desde que adotei o Sado que a minha vida tem sido um autêntico carrossel de emoções, repleto de evoluções, retrocessos, frustrações, mas também, e sobretudo, uma maravilhosa jornada introspectiva. 

Nunca me vou esquecer do momento em que o conheci. Escondido sob uma infinita camada de mantas, olhos esbugalhados, um estado de pânico e terror latentes. Quando chegou ao seu novo lar, no primeiro dia, encostava-se à porta da entrada, num estado de desorientação total. Demorou duas semanas desde que chegou ao seu novo lar a abanar a cauda de contentamento, e fê-lo de uma forma esfuziante: correndo e saltando por entre os sofás. Um primeiro sinal positivo que me deu um enorme alento e que revelou que todo aquele temor e terror inicial não eram mais do que uma capa de proteção, com uma forte origem genética, ou não fosse ele proveniente de uma ninhada assilvestrada.

Desde aí que me empenho, diariamente, a trabalhar na evolução do seu bem-estar, mesmo que isso signifique  numa melhoria  muito aquém do que eu desejaria. Algo positivo, por pouco que seja, deve ser encarado como um farol de esperança que nos permitirá continuar motivados. O que ele precisava era principalmente de se sentir querido e acarinhado, uma sensação que provavelmente era-lhe completamente desconhecida até ao dia em que nos conhecemos. Jamais castiguei ou utilizei outros métodos aversivos, porque jamais foi essa a minha forma de interagir com os cães e também porque sabia da alta probabilidade que, ao fazê-lo, estaria a prolongar e a exacerbar as suas inseguranças. 

Não posso evitar mencionar que houve períodos altamente frustrantes, em que me questionei várias vezes se realmente seria eu a pessoa indicada para lhe dar a vida que tanto merecia. “Não consigo mais, já fiz de tudo, já recorri a vários métodos, nunca o castiguei, sempre baseei a sua educação no reforço positivo, e, mesmo assim, há momentos em que, aparentemente do nada, dá um passo atrás.”

Como em tudo na vida, a consistência é chave. No futebol, uma boa exibição isolada não determina um bom jogador, mas um conjunto prolongado de exibições positivas constitui um atestado de qualidade. Paciência, persistência, empatia, compreensão e saber que, com o tempo e trabalho regular, as peças acabam por se encaixar onde queremos. Esta foi a lição inestimável que o Sado me ensinou e que tento aplicar diariamente na minha vida.

O Sado é, hoje, um cão visivelmente feliz e dono de uma indisfarçável confiança em si mesmo. Juntos, transformámos a incerteza na confiança de cada um, a frustração na resiliência e a irregularidade na consistência. Mas o grande vencedor desta história a dois fui eu – sou infinitamente mais rico por ter o privilégio de poder desfrutar todos os dias deste ser único, e que é uma parte vital da minha vida, mas também porque, graças a ele, tornei-me num melhor ser humano.